Examinando as razões da baixa representatividade de mulheres em tecnologia

Beatriz Oliveira
She Leads Brasil

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Hoje, enfrentamos um cenário de grande falta de diversidade de gênero em tecnologia. Segundo o relatório “Uma equação desequilibrada: participação crescente de Mulheres em STEM na ALC (América Latina e Caribe)”, estima-se que apenas uma mulher para cada quatro homens consiga um emprego na área de STEM.

Fatores que afastam as mulheres da tecnologia

O relatório da Unesco “Decifrar o Código: Educação de Meninas e Mulheres em Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM)” aponta que vários fatores podem afetar a participação de meninas e mulheres nessas áreas. Os principais estão ligados ao ambiente de aprendizado, ao status socioeconômico, às normas sociais e culturais, e aos estereótipos de gênero presentes na mídia.

Entrar em áreas técnicas já é um desafio para meninas e mulheres, pois não são estimuladas a isso. A maioria cresce sendo direcionada a brincar de casinha, boneca e a desenvolver habilidades de cuidado com o outro e com o ambiente ao seu redor. Por outro lado, os meninos crescem tendo contato com esportes, videogames e computadores, o que faz com que desde pequenos desenvolvam habilidades analíticas e que estimulam o raciocínio lógico. Reshma Saujani discute alguns desses aspectos em seu livro “Corajosa Sim, Perfeita Não”.

A consequência disso já pode ser vista na porta de entrada das faculdades, de acordo com uma matéria do Insper que foi baseada em dados do Censo da Educação Superior, elaborado pelo Inep, em 2020, cerca de 7 mil mulheres concluíram a graduação em cursos de computação e tecnologias da informação e comunicação (TICs), em comparação com os mais de 44 mil homens que terminaram cursos na mesma área, no Brasil.

Confesso que esses números não me surpreendem, pois vivi uma situação muito semelhante durante minha graduação. Em uma turma com cerca de 40 pessoas, apenas 5 eram mulheres, e ao longo dos 4 anos, esse número foi diminuindo até restar apenas eu e outra colega. Isso mostra que entrar na área é desafiador, mas permanecer também.

De acordo com um estudo do National Center for Women & Information Technology, 41% das mulheres que trabalham na área de tecnologia acabam deixando-a, em comparação com apenas 17% dos homens. Na minha visão, muitos podem ser os motivos pelos quais as mulheres estão com dificuldade de permanecer na área de tecnologia, desde a falta de igualdade de oportunidades e de incentivos adequados e a presença de um ambiente que não é acolhedor certamente são alguns dos diversos fatores que contribuem para esse cenário. Inclusive, discutimos alguns desses aspectos no artigo abaixo.

Mulheres que fizeram a diferença em tecnologia

Apesar de hoje vivermos um momento nada favorável para a entrada e permanência das mulheres em tecnologia, nem sempre a história foi assim. Ao ler o livro "A história desconhecida das mulheres que criaram a internet", me deparei com diversas histórias inspiradoras de mulheres que deixaram sua marca na tecnologia ao longo do tempo, incluindo Ada Lovelace, Grace Hopper, Elizabeth Jake Feinler, Stacy Horn e várias outras. A tecnologia que conhecemos hoje deve muito às contribuições de diversas mulheres, que ao longo da história foram líderes em suas áreas, apesar de terem tido seus nomes e realizações apagados das manchetes.

Além disso, temos evidências de que até mesmo no Brasil, a área de tecnologia já foi mais diversa. Esta é uma foto da primeira turma do Bacharelado em Ciências da Computação do Instituto de Matemática e Estatística (IME), na USP em São Paulo.

Fonte: Por que as mulheres “desapareceram” dos cursos de computação?

Segundo uma matéria publicada no jornal da USP, a primeira turma de Ciência da Computação do IME contava com 20 alunos, sendo 14 mulheres e 6 homens. Ou seja, 70% da turma era composta por mulheres na década de 1970.

Inclusive, em 2022, parte dessa mesma turma se reencontrou e concedeu uma entrevista para o UOL, onde abordaram o fato de que, naquela época, o fato de a primeira turma do curso de Ciência da Computação da USP ter sido formada por mais mulheres do que homens não foi algo que chamou a atenção dos alunos, pois todos eles haviam migrado do curso de matemática, onde as mulheres eram maioria.

Onde estão as mulheres na tecnologia atualmente?

Vendo todas essas referências, você pode estar se perguntando: o que afastou as mulheres da tecnologia? Se elas já foram maioria, por que esse cenário mudou?

Certamente existem muitos fatores, mas um dos mais comentados e conhecidos é o que foi publicado neste artigo da NPR, que mostra que o percentual de mulheres na ciência da computação começou a cair aproximadamente no mesmo momento em que os computadores pessoais começaram a aparecer nos lares dos EUA.

Esse material da NPR também relata que esses primeiros computadores pessoais não eram muito mais do que brinquedos e o ponto que mais chama atenção nessa análise é que esses brinquedos eram comercializados quase inteiramente para meninos. Com isso, a ideia de que computadores eram para o público masculino tornou-se uma narrativa predominante.

Fonte: IBM Personal Computer advertisement e The IBM Personal Computer no Pinterest

Nas poucas vezes em que as mulheres apareciam nas publicidades, eram retratadas de forma sexualizada e até mesmo estereotipadas como não entendendo de tecnologia.

Fonte: When computers were sexy: Hilarious vintage ads from the early days of the PC, TECHNOLOGY ADS / RETRO AD OF THE WEEK: DATACOMP, 1970 e 12 classic computing adverts from the 1970s

Essa matéria mostra que na década de 1990, a pesquisadora da Universidade da Califórnia, Jane Margolis, descobriu que as famílias eram muito mais propensas a comprar computadores para meninos do que para meninas, mesmo quando estas últimas estavam realmente interessadas em computadores.

Com isso, criou-se o estereótipo de que a computação é algo masculino, a ponto de, até os dias de hoje, ainda ser difícil para muitas pessoas conceberem a imagem de uma mulher como profissional na área de tecnologia. Inclusive, discutimos sobre isso neste artigo.

Os vieses e estereótipos estão presentes nas pequenas coisas, até mesmo naquelas que consideramos inofensivas. Um exemplo disso ocorreu em 2014, quando a Mattel lançou um livro da Barbie intitulado “I Can Be a Computer Engineer” (“Eu Posso Ser uma Engenheira de Computação” em português). Na história, a Barbie conceitua um jogo que está planejando, mas depende de meninos para desenvolver o software. Resumidamente, isso sugere que ela é incapaz de desenvolver sozinha, contradizendo o título que afirma que ela pode ser uma engenheira de computação.

Um outro exemplo do impacto dos vieses e estereótipos é possível de ser visto em uma pesquisa conduzida pela LivePerson, nos Estados Unidos, que revelou que 91,7% dos entrevistados não conseguiram citar o nome de nenhuma mulher líder ou referência em tecnologia, enquanto apenas 8,3% afirmaram conhecer alguma. Entre os que afirmaram poder nomear uma líder de tecnologia famosa, apenas 4% citaram nomes reais, e vários mencionaram nomes de assistentes virtuais como Siri ou Alexa. Em contrapartida, 57% dos entrevistados conseguiram citar nomes de homens conhecidos como Bill Gates, Steve Jobs, Elon Musk e Mark Zuckerberg.

Por todos esses exemplos, é possível entender por que não temos a mesma quantidade de meninas e mulheres na computação em comparação com os homens. Eu mesma cresci sem acesso à computação devido à falta de recursos financeiros, sempre estudei em escolas públicas, e também à falta de estímulos nesse sentido, além de não ter familiares trabalhando na área. E sei que essa não foi apenas a minha realidade, mas a da maioria das meninas e mulheres ao redor do mundo.

As consequências de não ter diversidade de gênero em tecnologia

A importância de ter mulheres em tecnologia vai muito além de aspectos como “devemos contratar mulheres”, como a maioria das empresas gosta de divulgar para parecerem diversas. Precisamos de diversidade em tecnologia pela forma como estamos desenvolvendo soluções, pois qualquer tecnologia é desenvolvida por pessoas, e estas têm vieses que são repassados para essas soluções. Ter times diversos garante que haja mais pessoas diferentes pensando no desenvolvimento de soluções tecnológicas, evitando assim possíveis problemas e estereótipos.

Um exemplo do impacto da tecnologia com viés é o caso dos assistentes de voz, conforme destacado no relatório “ I’d Blush if I Could ” da UNESCO. O documento mostra que a grande maioria dos assistentes, como a Siri da Apple, a Alexa da Amazon e a Cortana da Microsoft, foram projetadas para serem percebidas como femininas, desde seus nomes até suas vozes e personalidades.

Outro exemplo é o que foi publicado no Jornal da USP, que menciona o The Bulimia Project, um grupo de conscientização sobre distúrbios alimentares, que testou geradores de imagens de IA para revelar como é a ideia dos programas de um físico “perfeito” em mulheres e homens. De acordo com o resultado obtido, 40% das imagens mostravam mulheres loiras, 30% mulheres de olhos castanhos e mais de 50% tinham pele branca, enquanto quase 70% dos homens “perfeitos” tinham cabelos castanhos e 23% olhos castanhos. Semelhante às mulheres, a grande maioria dos homens tinha pele branca e quase metade tinha pelos faciais.

Por fim, é evidente que enfrentamos hoje um grande problema, e compreender suas raízes e origens é crucial para alcançarmos uma mudança significativa na forma como desenvolvemos a tecnologia que deixaremos para as próximas gerações.

Venho utilizando várias das informações deste artigo em apresentações sobre diversidade e inclusão em TI ao longo dos últimos anos, e consolidá-las aqui é uma maneira de contribuir para o acesso a essas informações. Espero que esta leitura te ajude a compreender um pouco desse cenário, para que possamos juntos continuar buscando melhorias.

No artigo abaixo, trago também algumas sugestões sobre como podemos evoluir nesse cenário.

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